Texto retirado do livro Morte e Suicídio, uma abordagem multidisciplinar, de Evaldo A.
D’Assumpção, Gislaine M. D’Assumpção e Halley Alves Bessa (Editora Vozes,
1984).
Uma
das causas bastante frequentes do medo da morte está relacionada com o que virá depois da morte. O medo do desconhecido, a
preocupação com o que
poderá estar além das portas da morte,
gera angústias e sofrimento.
Algumas pessoas recorrem à simples negação de tudo, para se tranquilizarem. Nada existe depois da morte,
dizem eles. Entretanto, a simples ideia
do vazio, do nada, cria uma angústia ainda maior, pois de
que vale o que se faz nesta vida, se depois tudo acaba?
A própria satisfação dos atos em
si, o hedonismo,
a alienação, são formas de anular as preocupações pelo "depois",
mas, no mais profundo interior de cada pessoa, persiste a dúvida, o medo: e depois?
Muitas religiões e filosofias procuram explicar o que se segue à vida. Algumas, reduzindo tudo a formas de
energia, levando o homem a se preocupar com sua
purificação energética, visando a união, a fusão com o centro energético superior que se mistura com a
figura de Deus, do Supremo Criador, de outras religiões.
Algumas seguem os princípios da
reencarnação, onde cada homem, submisso à inexorável lei do Karma – o princípio da causa e efeito – morre e renasce em outro
corpo, seguindo uma longa sucessão de vidas,
onde iria pouco a pouco se redimindo de erros cometidos nas encarnações anteriores, até chegar a um ponto onde estivesse
suficientemente purificado para se
unir ao Ser Supremo. Não nos compete
aqui discutir as formas apontadas por estas diferentes religiões. Procuraremos tão-somente dar uma visão de
como o católico pode prever os acontecimentos que se sucederão à morte, modificando um pouco o que os tradicionais catecismos – dados em
linguagem acessível a crianças – ensinavam em nossa infância e que, para muitos adultos de hoje, permanecem
como o ensinamento
real da
Igreja Católica, simplesmente porque não procuram amadurecer seus conhecimentos de religião, tanto
quanto amadureceram seus conhecimentos técnicos e científicos.
Inicialmente, uma palavra sobre:
"existirá o depois da vida?" Numa sociedade altamente tecnocrática, admitir a existência de uma outra vida sem
comprová-la cientificamente não é
aceito por muitos. A própria existência de Deus é questionada, já que ele não foi ainda demonstrado em laboratório.
Lembramo-nos das palavras tão
ingênuas de Gagarin, quando retornou de seu primeiro voo espacial:
"Andei pelos céus e não vi Deus!" Pobre afirmação preparada por uma filosofia materialista... Será que a simples visão dos cosmos, o equilíbrio formidável das gigantescas estruturas
planetárias não lhe davam a imagem indiscutível de um Criador Supremo, de um
Maestro Fantástico que rege a sinfonia do infinito? Será que ele, cientista afeito
ao raciocínio
profundo, não compreendia que a simples localização de Deus na escotilha de uma
nave espacial ou nas lentes de um microscópio anularia totalmente a essência inefável de Deus? Deste modo, falar sobre uma
vida após a vida, com homens tecnicistas, se torna bastante complexo.
Como comprovar algo que transcende às nossas próprias limitações de conhecimentos, de compreensão e até mesmo de palavras, para exprimir uma
realidade além de nossa realidade? Entretanto, o problema existe e atrai a muitos. Atraiu inclusive a um psiquiatra
americano, chamado Raymond Moody Jr. Suas atenções foram despertadas inicialmente em 1965, quando ele era
estudante de filosofia e teve um contato maior com um professor de psiquiatria da Faculdade de
Medicina de Virgínia. Este professor tinha experienciado
uma "morte clínica" – pequeno período em que tivera uma parada cardíaca e, durante este
tempo, passou por uma experiência que
marcou toda a sua vida. Narrando
esta experiência a Raymond Moody, despertou neste um enorme interesse
pelo assunto, levando-o a buscar novos casos, investigando-os em todos os seus
detalhes.
Após entrevistar cerca de 150 pessoas que passaram por experiências
semelhantes: ou "morte clínica" ou acidentes gravíssimos, com condições bastante próximas da morte, recolheu todas as informações obtidas e, depois de ordená-las, publicou-as no livro Vida
depois da Vida, complementando-o com um segundo volume: Reflexões sobre Vida
depois da vida. Neste seu relato, ele conta como estas pessoas, que estiveram frente a frente com a morte, durante
alguns minutos, talvez segundos,
viveram experiências, que marcaram
profunda e definitivamente suas vidas, levando-as inclusive a uma mudança radical de
comportamento e da própria maneira de encarar a vida.
Resumidamente, damos a seguir suas descrições. Maiores
detalhes serão encontrados nos livros originais. Depois de entrevistar as 150 pessoas, Moody verificou que
praticamente todas tinham vivido uma
experiência inusitada e fascinante, onde os detalhes coincidiam em
praticamente todas as histórias. Não eram pessoas relacionadas entre si, nem membros de uma mesma
comunidade religiosa ou cultural. Eram pessoas diversas, que nunca haviam se
comunicado
entre si e, portanto, não havia a menor possibilidade de uma
"construção" artificial de estórias. Principalmente porque, até a publicação de
seu primeiro livro, Moody não foi capaz de encontrar na literatura qualquer
outra narrativa
semelhante, que pudesse ter sido lida anteriormente por estas pessoas,
levando-as a construir uma estória em cima de outras lidas anteriormente.
Cada uma destas pessoas narrou
tudo aquilo que vivenciou tão logo aconteceu sua "morte
clinica" ou o acidente grave. E os fatos narrados por cada uma delas tinham uma certa sequência, também igual para todas as
outras.
Os
acontecimentos mais significativos e que gostaríamos de comentar
depois foram os seguintes:
1) Ruído: Imediatamente após o fato, a pessoa ouvia um ruído. Para alguns era uma música,
para outras sons de sino, campainha ou então um zumbido, às vezes descrito como desagradável.
2) Fora do corpo: Uma sensação estranha era
sentida por quase todos, que se viam, subitamente, fora de seu próprio corpo. Era como que se
estivessem flutuando acima do local – sala de cirurgia ou local do acidente – vendo tudo o que se passava,
inclusive o seu próprio corpo. Várias pessoas foram capazes de descrever,
detalhadamente, fatos acontecidos
durante sua "morte clínica", dentro
e fora da sala de cirurgia, de tal forma correta, que
somente se estivessem presentes naquele local poderiam fazê-lo. E, naquele
momento, medicamente estavam imóveis, inconscientes.
3) Túnel: Simultaneamente a estes fatos, tinham a sensação de penetrar num túnel escuro,
passando por ele até chegar a um ambiente fartamente iluminado. Ali tinham a experiência seguinte.
4) Encontro com o Ser de Luz: Do outro lado do túnel, encontravam-se
com um Ser de Luz, o qual transmitia uma enorme sensação de Amor e de Paz. Este Ser de Luz comunicava-se com a pessoa
por meios indescritíveis, já que não possuía boca nem voz, mas era perfeitamente compreendido. Este Ser
como que convidava a pessoa a rever a sua vida e isto acontecia praticamente de uma só vez, porém com todos os
detalhes. Durante esta revisão de vida, eram apontadas as situações em que a pessoa havia, de certo modo,
falhado em seus objetivos. Basicamente, eram apontadas as situações onde havia faltado
com a caridade e aquelas em que teria
tido oportunidade para um crescimento espiritual e não as aproveitou adequadamente. Mas
não havia, naquela revisão, um
sentido de censura, de repreensão. Havia, muito mais, um sentido de orientação, de crescimento. Havia, sobretudo, um grande Amor irradiando daquele
Ser de Luz.
5) Barreira: Em seguida, a pessoa se via diante de uma espécie de barreira, a qual ela sentia que devia atravessar.
Entretanto, ao procurar fazê-lo, era puxada de volta,
acabando por acordar em seu próprio corpo, quando as medidas terapêuticas instituídas tinham conseguido
recuperar o paciente. Quase todos diziam que, de certa forma, teriam gostado muito de continuar a jornada, passando além da
barreira. Mas não houve um só caso de alguém que passasse a barreira e depois retornasse.
Analisando sucintamente estas experiências, podemos
concluir:
Teriam estas pessoas realmente
experienciado a morte? Seria, tudo isto por que passaram, fruto exclusivamente da imaginação? Cremos que, afirmar de modo
categórico o que foi a realidade de tudo isto é praticamente impossível. Podemos, em
função dos muitos elementos apresentados detalhadamente nos livros originais,
deduzir o seguinte:
1º) Estas pessoas não morreram realmente. Poderíamos dizer que passaram por uma
experiência de "pré-morte", que estaria além da vida, porém
antes da morte verdadeira. A barreira seria o elemento mais significativo desta
afirmação.
Não houve um só caso de pessoa que, tendo passado a
barreira, tivesse voltado e narrado suas
experiências.
Todos sentiram vontade de
atravessá-la, porém todos voltaram antes. Isto nos parece a diferença entre a
morte verdadeira
e a pré-morte. Aqueles que
atravessaram a barreira são os que morreram realmente. Estes não voltaram. E continuaremos sem saber, dentro
de nossa escala de valores, de referências, como é o "lado-de-lá".
Entretanto, o que vivenciaram já foi o suficiente para lhes dar uma pequena amostra de que existe
realmente o outro lado. Todas estas pessoas entrevistadas
diziam da enorme dificuldade em narrar o que vivenciaram. E esta dificuldade residia, especialmente,
na falta de expressões verbais adequadas para descrever o que viram e o que sentiram.
Como descrever um local onde as
dimensões de espaço e de tempo não existem? Como falar de um lugar que não é grande nem é pequeno, tem cores
que não são cores, tem luz mas não é a nossa luz? Onde o tempo não é tempo, onde toda uma vida
acontece num só instante, de modo a ser vista em seus mínimos detalhes?
Algumas destas pessoas estiveram em estado de
"morte clínica" apenas por pouquíssimos minutos, mas, dentro deste pequeníssimo tempo, foram capazes de viver tudo
isto e até as suas próprias vidas inteiras!
Portanto, como "amostra" do que vem depois,
estas experiências foram perfeitamente válidas. Ainda que "amostra" infinitamente pequena!
2º) A passagem pelo túnel é bastante interessante se a relacionarmos com o nosso próprio
nascimento. Imaginemos uma criança dentro do útero materno. Se fosse possível entrevistar esta criança,
pouco antes de seu nascimento, ao ser interrogada sobre o que ela achava da ideia de vir para um outro mundo, aqui
fora, ela certamente diria: "Ora, o que é isto! Não existe mundo além
deste em que
vivo! Aqui estou bem acomodada, tenho tudo de que necessito, estou muito bem aqui!
Não gostaria de sair, pois, além do mais, se sair daqui acredito que tudo
vai se acabar!"
Mais tarde, ao se iniciar o trabalho de parto, a criança será apertada, espremida e, no
auge de seu desconforto e sofrimento, vislumbrará um túnel escuro como única saída para aquela situação. Penetrará
por este túnel (canal vaginal) e acabará por sair para
a luz, chegando a um outro mundo, muito mais
amplo do que aquele em que viveu por
meses e onde terá muito mais oportunidades para crescimento, para evolução. Onde, apesar de todos os
descaminhos de seu zelador, o homem, poderá ser
feliz, poderá amar e ser amado. Da mesma forma, quando completarmos nossos "nove meses" na Terra, também sentiremos os sofrimentos e o medo de sair para um outro mundo
que desconhecemos
– e que
até negamos existir – mas virá o "trabalho de parto" da morte, faremos nossa
entrada pelo
túnel e iremos
descobrir, do outro lado, uma nova vida, muito melhor, muito mais real. É como se estivéssemos no grande útero do Universo, num processo de gestação, aguardando o momento de nosso nascimento para a vida verdadeira e definitiva. Pois morte e nascimento
são apenas nomes diferentes para uma mesma realidade: o início da vida!
3º) Ser de Luz: Muitos dos que vivenciaram esta
experiência
identificaram este ser com Cristo. Esta identificação pode ser real tanto como pode
ser atribuída a uma formação religiosa prévia. O importante,
entretanto, é compreendermos o sentido deste Ser e de sua atuação. Ele representava Amor, Paz. Mas
também era o Mestre que mostrava, carinhosamente, o que cada um havia feito de suas vidas.
Procurava ajudar no sentido de uma correção, de uma mudança. Pois todos tiveram uma nova oportunidade.
E, no dizer de Moody, praticamente
todos passaram por uma mudança radical em suas vidas.
4º) Experiência fora do corpo: Esta descrição traz para muitas pessoas uma enorme
preocupação, pois aparentemente estaria em contradição com os ensinamentos
básicos da
doutrina católica. Na realidade, não há qualquer motivo para esta preocupação. Com o desenvolvimento da parapsicologia,
muitos fenômenos que ocorriam com diferentes pessoas, e que eram levados ao campo do sobrenatural, hoje são perfeitamente explicados por esta ciência.
O cérebro humano, esta parte maravilhosa da
criação de
Deus, é extremamente pouco conhecido pela ciência humana. Sabe-se que utilizamos
apenas 30% de sua capacidade, restando 70% para ser compreendida e melhor utilizada. Telepatia, telecinesia, clarividência, são fenômenos
hoje bem aceitos pela ciência, ainda que não
completamente explicados e passíveis de serem reproduzidos quando se quer. Tanto que pessoas que apresentam
tais fenômenos e se propõem a se tornar artistas de palco para tais
demonstrações,
aprendem também inúmeras maneiras de fraudar, pois, se num espetáculo público
não conseguem os efeitos de sua paranormalidade em determinada situação, reproduzem-na por meios fraudulentos,
por prestidigitação ou por qualquer outro meio natural. Exemplos bem típicos disto tivemos com Uri Geller e outros paranormais, que se tornaram
artistas de palco para retorcer talheres, parar relógios e adivinhar coisas.
Voltando à experiência fora do corpo, não existem
ainda resultados de pesquisas que expliquem
de forma total e definitiva tais fenômenos. O que se sabe é que eles existem e são comprovados em laboratórios. Um exemplo disto é feito colocando-se cartões com desenhos previamente
estabelecidos e em ordem determinada numa sala de
experiências
onde existe um teto falso. Estes cartões são colocados acima do forro, neste teto falso. A pessoa que
apresenta eventualmente este fenômeno fica na sala, rigorosamente observada e controlada pelos pesquisadores.
Ela se coloca em condições de relaxamento, que favorecem o aparecimento da "saída do corpo" e, algumas vezes, em número estatisticamente significativo, é capaz de descrever, sem erros, os cartões e a posição em que se encontram, no teto
falso, onde ela não podia
ver pelos meios usuais.
Estas pessoas informavam que, nas vezes em que foram
capazes de descrever corretamente, haviam saído do corpo, atravessado o teto falso e visualizado os cartões. Esta saída
do
corpo não significa um "abandono" do corpo, mas uma espécie de expansão da consciência,
que vai além dos limites corporais, da mesma forma que sabemos de fatos
acontecidos
com pessoas que foram vistas bem distantes de onde estavam, geralmente acidentadas.
Muito ainda temos a descobrir a
respeito das maravilhas do cérebro humano. Pena que dedicamos tantos esforços, tantas verbas, para
descobrir novos meios de destruição, de assassinato e nos descuidamos de partes tão importantes para a felicidade humana. Até aqui, é bom
recordarmos a "revisão de vida"
feita pelo Ser de Luz. Será que
estaremos em condições de enfrentar esta revisão de vida, agora?
Feitas estas considerações
genéricas, vamos ao nosso ponto fundamental: Qual a visão católica da vida
depois da vida?
Muito já se falou, muito já se escreveu a respeito
deste assunto. A escatologia (grego: aquilo
que vem por último) é uma parte
essencial da fé e da teologia. Em linguagem mais antiga, a escatologia era
chamada de "os novíssimos do homem e do mundo", numa
alusão ao que vinha depois do fim: o mais novo para a realidade do
homem e do
mundo.
Compreender a morte é fundamental para o homem, especialmente o que se diz cristão, pois chega a
ser um
paradoxo aquele que crê em Deus, que deseja uma vida junto ao Criador, temer a
passagem que o leva diretamente a esta situação desejada.
Mas o paradoxo não fica somente aqui.
Dentro deste contexto, o suicídio poderia ser tomado então como algo de saudável, pois seria a busca mais rápida deste encontro com o Pai. O que não é verdade. Daí, dizermos da importância de uma
melhor compreensão da morte, sobretudo para um viver mais pleno, mais feliz, mais cristão.
Mas e o depois da morte? O que acontecerá com o homem? Recorrendo â Bíblia, vamos
tomar três citações de Paulo: "Mas como está escrito: o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para
aqueles que o amam" (1Cor 2,9). "Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso
alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos" (Rm 8,24-25). "A fé é um modo de
já possuir
o que se espera, um meio de conhecer
realidades que não se veem" (Hb 11,1).
Analisando estas citações, podemos
afirmar que o conhecimento exato de como será "o outro lado" não deve ter qualquer importância para
aquele que tem fé. A busca destes conhecimentos é um imperativo para aquele que não acredita, pois
ele precisa pegar para crer.
Entretanto, como tocar aquilo que
está muito além de nossa compreensão?
Talvez, se nos fosse dado ver,
tocar, o outro lado, menos ainda iríamos acreditar, pois quando o sentíssemos completamente fora de
nossos valores, de nossos referenciais,
certamente iríamos negá-lo. Assim como negamos tantas realidades que frequentemente ocorrem em nossas vidas, simplesmente porque não estão enquadradas
dentro de nossos valores e referenciais daquele momento. E,
passado algum tempo, ao
mudarmos estes valores, ficamos questionando
como fomos capazes de negar coisas tão reais.
De qualquer forma, podemos conjecturar em torno do que
irá acontecer após a nossa morte, buscando
com isto dar algum terreno para
pisarmos, em busca do fortalecimento de
uma fé que deve crescer sempre e sempre. Aprendemos no catecismo
que, quando o homem morre, sua alma deixa o corpo e vai para o julgamento de Deus.
Imaginávamos então um tribunal onde um juiz severo, sentado solenemente em sua mesa, ia apontando
nossos pecados, colocando-os
publicamente em nossa frente, para em seguida pronunciar a sentença
terrível: Inferno?... Purgatório?... Céu?...
Então, conforme a decisão final, iríamos
para cavernas escuras, onde enormes caldeirões com óleo fervendo seriam utilizados para nos cozinhar por toda a
eternidade... Além das terrificantes figuras demoníacas com seus
chifres e tridentes
laceradores.
Numa melhor hipótese, iríamos para salões enormes, de chão incandescente, felizmente
sem as figuras demoníacas, onde passaríamos uma temporada, meses ou anos, dependendo de nossas culpas, até que pudéssemos
ser levados ao céu. E, se conseguíssemos a clemência do Juiz, passaríamos ao céu, onde ganharíamos um par de asas,
uma harpa e ficaríamos flutuando
eternamente sobre as nuvens brancas.
Como imagem a ser transmitida
para crianças ingênuas, isto ficava bem. Mas, da mesma forma que a matemática era ensinada – mostrando-se João
com uma maçã, encontrando-se com Maria, que tinha outra maçã, e depois perguntando-se quantas maçãs ficavam na cesta, quando eles ali as
colocavam (para se ensinar 1 + 1 = 2) e nos anos seguintes as operações matemáticas iam mudando até se chegar à álgebra, trigonometria – o ensino de religião deveria ter
evoluído igualmente.
A fé infantil, ingênua, deveria ir sendo substituída por uma fé adulta, com conhecimentos teológicos
proporcionais à própria evolução intelectual do homem.
Mas isto não acontecia. Todos, ou quase todos, ficavam
estacionados no catecismo infantil e então, ao chegar à idade adulta, aqueles
ensinamentos se tornavam impossíveis de serem aceitos e ao invés de se procurar melhores conhecimentos,
simplesmente abandonava-se tudo, passando-se a
considerar a religião como coisa de tolos. Como entender, então, todo aquele processo de
"julgamento", céu e inferno? Para compreendermos isto, é preciso que
descubramos o homem em sua totalidade.
Temos um corpo material, feito de
células, átomos e moléculas ordenadas de maneira fantástica, de tal
forma que,
até hoje, toda a parafernália científica ainda não conseguiu reproduzir com perfeição
nem uma pequena parte do ser humano. Mas este corpo é apenas uma parte do todo, que é o homem. Além do corpo material,
temos a mente
e o
espírito,
que dão ao homem a sua essência trinitária, criada à imagem e semelhança de Deus, também trinitário: Pai, Filho e Espírito Santo. Assim como a Trindade Santa é uma só pessoa,
também o homem, em suas três partes, é uma só,
indivisível. Não se compreende a existência do espírito sem o corpo e sem a mente, assim como o corpo não existe sem o espírito e sem a mente.
Entendendo esta composição, vamos
também entender o porquê de tantos
problemas, de tanta violência, de tantos desencontros
nos dias atuais. O homem cuida de seu corpo pela alimentação, pelos exercícios. Ele cuida de sua mente pelo trabalho intelectual, pela
leitura. Mas o espirito não tem sido cuidado adequadamente. E ao se descuidar do espírito, o homem se torna fraco em uma de
suas partes essenciais, passando a se comportar como um automóvel que, apesar de uma carroceria
muito bem cuidada, de um motor fantástico, estivesse sem pneus e com a suspensão toda desengonçada. Certamente ele
não andaria, não exerceria sua função completa. Poderia ser admirado na
beleza de
suas linhas, na potência de seu motor, mas tudo isto estaria inútil pela impossibilidade de se movimentar.
Assim é o homem. Realiza maravilhas com seu
corpo, coisas
fantásticas com a sua mente, mas o resultado final de suas obras redunda em fracasso, pois não trabalha
harmonicamente com toda a sua realidade. Seu
espírito está atrofiado e se atrofiando, a cada
dia mais. Quando o homem morre, o que primeiro acontece é a sua saída das limitadas dimensões de tempo e espaço em que vivemos. Isto pudemos constatar nas experiências descritas por Raymond Moody, onde observamos que tudo o que acontecia era em absoluta ausência de tempo e espaço.
Saindo destas dimensões, ele entra, então, na
eternidade, que é exatamente a ausência do
tempo. Já não existe nem ontem nem amanhã. Não existe passado nem
futuro. Só existe o presente que é a
eternidade. Deste modo, o homem entrará na participação total de toda a
história da própria humanidade. Ele estará vivenciando a criação do universo e o juízo final.
E será nesta condição que ele se
encontrará consigo mesmo. Ao morrer, deixa de existir o que chamaríamos de homem
exterior, que foi esta imagem com que vivemos durante todo o nosso tempo de
existência terrestre. Imagem que
constantemente colocava máscaras, que assumia aparências, sempre em função do momento, dos interesses. Imagem que era capaz de mentir, de negar, de ocultar,
de aparentar alegria quando estava triste,
de chorar apesar da alegria. Este
homem exterior morre com o nosso corpo. Corpo que morre apenas em sua aparência
também exterior. São nossas células, nossos átomos e moléculas, que realmente não eram nossos, pois estávamos
constantemente substituindo-os, trocando-os,
renovando-os até voltarem à natureza a
que pertencem. Restará o corpo real, nosso
verdadeiro corpo, que não terá estruturas atômicas nem energéticas, pois sua
substância será totalmente desprovida de tempo e espaço, tendo apenas as
características que não somos capazes de descrever ou definir, pois estão além
de nossas capacidades intelectuais. Características compatíveis com a essência de Deus, com o infinito e a eternidade, que serão a nossa nova realidade. E
este corpo real não se separará do espírito e da mente, que dele fazem parte
integral e indivisível.
Despertará assim o homem interior, pleno, autêntico, sem máscaras e sem engodos. E será este nosso homem interior que irá fazer o seu próprio julgamento. Não
haverá um
Juiz Severo, mas um Pai Amorosíssimo,
que "escutará” seu filho, o qual libertado de suas mentiras, de suas
limitações, tomará uma decisão, decisão esta em função de tudo aquilo que foi a
sua vida terrestre.
O homem interior saberá, plenamente, o que foi e o que fez em sua vida, quais as
opções que tomou e como as tomou. Como agiu, como pensou, como refez, a
cada momento, sua
existência. E em função de seu
próprio modo de viver, decidirá, agora de
maneira definitiva, a sua condição para a eternidade.
Se se julgar em condições de optar por estar com Deus, seu Criador e Pai, esta opção corresponderá
àquilo que aprendemos a chamar de céu. Pois
estar com o mais puro Amor é estar na mais completa Felicidade. Se, entretanto, em seu próprio julgamento, decidir por estar sem Deus, já que sua vida foi toda ela dirigida para esta
condição, ele fará a opção por estar
sem Deus e isto corresponderá ao que aprendemos a chamar de inferno.
Qualquer
destas duas decisões têm a característica básica de definitivo, pois estando fora do tempo, não existindo um amanhã
para uma mudança de ideia – e tendo a
decisão sido tomada pelo homem interior, que não mente, não engana os outros nem a si próprio – não haverá uma nova oportunidade
para mudar tudo. A oportunidade existe sim, existe durante todos os dias que
temos, de nossa vida terrestre. Não existirá depois da morte, depois da decisão
que será única e final. Compreendendo isto, entenderemos entenderemos
aquilo que nos foi ensinado no catecismo, quando diziam que o céu e o
inferno eram para sempre. Depois
de adultos, porém, buscamos sair desta realidade, alegando que Deus era muito
bom e um dia ele “tiraria” todo mundo do inferno.
Deus
não tira. Pois assim como ele respeitou nosso livre-arbítrio
durante toda a nossa existência na terra, livre-arbítrio que nos permite até mesmo negar a existência de Deus – e ele nunca nos impõe sua vontade:
tem de acreditar! – também depois de nossa morte, ele respeitará a
nossa decisão e jamais irá
impor sua presença pela eternidade àquele que
sempre o negou e renegou, durante a vida temporal. Céu
e inferno – apenas nomes que damos a situações
e não
a locais – são definitivos; eternos, por decisão
nossa e não por imposição de Deus. A vontade é nossa. A decisão é nossa. E o purgatório? Compreenderemos o purgatório, não como lugar, mas também como situação, se entendermos que, sendo Deus a suprema
perfeição, o homem impuro não tem condições de
estar diante dele, muito menos pela eternidade.
Então, se a decisão do homem interior foi para estar com
Deus, ele deverá passar por algo que chamaríamos de "processo de
purificação", que lhe dará a condição de estar diante da perfeição que é Deus. Este processo de
purificação é aquilo que aprendemos a
chamar de purgatório. Como isto será, está além de nossa compreensão.
Diante disto, podemos compreender a invalidade da
reencarnação. O homem tem uma só
existência e esta lhe é suficiente para construir a decisão final de seu
homem interior. Se lhe fossem dadas
várias existências, não seria apenas
sua última a que motivaria a decisão final, porém a soma de todos os seus comportamentos. Portanto,
tanto faz que o homem viva um, dez, cinquenta ou
cem anos, será o conjunto de sua vida que trará a decisão final. Entretanto, é preciso lembrar-se de que
esta decisão não é a decisão do homem exterior, que somos nós em nosso dia a dia. Uma pessoa
que tenha levado uma existência totalmente afastada dos caminhos de Deus, mas que num determinado momento reconhece suas faltas e faz todo um processo de revisão e mudança de vida, gera um mérito muito maior do que alguém que segue seus caminhos sem
maiores convulsões interiores. Lembremo-nos da palavra de Cristo, quando diz que haverá maior alegria no céu por um
pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não precisam de
conversão (Lc 15,7). Portanto, é o conjunto da vida de cada pessoa que resultará
na decisão final, mas cada ato tem seu peso diferente e pode uma simples atitude modificar todo um contexto de vida.
E se entendermos que na morte o homem deixa a
dimensão tempo, não haverá mais o retornar para
começar outra vida,
dentro da temporalidade. Diz Paulo: "E
é um fato que os homens devem morrer uma só vez, e logo em seguida vem o julgamento" (Hb 9,27). Com
isto fica mais do que evidente que não é
possível a reencarnação e que cabe ao homem fazer da única existência que lhe é
dada, a caminhada segura para a decisão
final: para Deus! Entretanto, não bastaria esta decisão
final nossa, para alcançarmos a
plenitude de Deus. Nossas limitações
de homem-criatura nos pesam em demasia para que sejamos capazes,
por si sós, de
determinarmos a bem-aventurança eterna. Diante disto,
Deus, em sua infinita sabedoria e misericórdia, deu-nos
o elemento que nos faltava para tal decisão: a redenção através de seu próprio filho, Jesus Cristo.
Foi
a disposição voluntária do Filho de Deus, de se entregar à cruz, às humilhações e às torturas que lhe foram impostas pelo próprio povo
escolhido de Deus, com o claro e específico objetivo de redimir o homem, que nos deu a condição básica que nos faltava
para completar a decisão final, a de-cisão que nos cortará das
limitações e sofrimentos da condição de pecadores e seres imperfeitos, para a eterna felicidade. Sucessivamente,
Cristo nos deu provas desta redenção: "Pois
aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará" (Lc 9,24). "Pois Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho
único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a
vida eterna. Pois Deus não enviou o seu Filho ao
mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja
salvo por ele" (Jo 3,16-17). "Eu sou a ressurreição e a vida. Quem
crê em mim, ainda que morra viverá" (Jo 11,25) "... e, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim" (Jo 12,32) "...porque não vim para julgar o mundo, mas
para salvar o mundo" (Jo 12,47). "Eu sou o Caminho, a Verdade e a vida.
Ninguém vem ao Pai a não ser por mim" (Jo 14,6).
Cristo,
pela sua morte na cruz, trouxe uma nova dimensão para a morte. Se observarmos o Antigo Testamento, vamos ver que ali a
morte está sempre ligada ao pecado, ao
castigo pelas transgressões do homem. A morte em si era o castigo para o mal. Com a vinda de Cristo e com sua morte seguida pela
ressurreição – ressurreição esta que confirma a condição messiânica de Filho de Deus,
de Jesus Cristo – também nós passamos da morte pelo pecado, sem ressurreição, para a
morte-passagem, a morte-libertação, que nos leva ao encontro do Pai. A morte em si deixa de ser castigo, para ser
passagem. Uma nova perspectiva é criada com a vinda de Cristo e nele o homem encontra também o exemplo, o caminho e a ajuda de que necessita para
superar os obstáculos desta caminhada até o fim de seus dias.
O que
dizer então do suicida, quando este busca encurtar a sua vida em busca de uma Paz eterna? A
interrupção voluntária da própria vida é uma
violência contra os planos de Deus. É,
de certa forma, uma pretensão do homem ser maior do que o próprio Criador, ou seja, ele, o homem, passa a ser o senhor do tempo e da vida, decidindo, por si só, quando deverá terminar a
sua jornada. Por esta atitude de soberba, o homem contesta a Deus e assim cria para si a condição de negar o "estar com Deus", no momento de sua decisão final.
Cabe,
portanto, a cada homem viver a vida que lhe é dada, não importa o tempo que terá. A cada dia ele
deve estar
construindo a sua decisão interior, de tal forma que, quando chamado a tomá-la, o faça realmente para Deus.
Uma
palavra final a respeito do inferno. Para muitos, a simples menção do inferno contradiz a bondade
infinita de
Deus. Já explicamos que o inferno não é uma criação de Deus, mas uma decisão do homem
que se permite negar a receber o infinito amor que Deus lhe quer dar. Deus respeita esta negação de receber. Não se
pode dar algo a quem não o quer receber. E, então, o inferno é criado.
Mas, sendo Deus o criador de todas as coisas, o Senhor absoluto de tudo, pode-se admitir, dentro de um
processo de Esperança, que no final
da temporalidade terrestre, na Parusia,
que o Amor Absoluto venha realmente a impregnar todas as coisas e, quem sabe, até
mesmo aqueles que se recusaram a ser amados possam ser restaurados, da eternidade de volta para o tempo e, em seguida, readmitidos na eternidade do Infinito Amor de Deus!
BIBLIOGRAFIA
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