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sábado, 16 de junho de 2012

Vida após a morte: uma visão dentro da perspectiva católica - Evaldo A. D'Assumpçã

Texto retirado do livro Morte e Suicídio, uma abordagem multidisciplinar, de Evaldo A. D’Assumpção, Gislaine M. D’Assumpção e Halley Alves Bessa (Editora Vozes, 1984).



Uma das causas bastante frequentes do medo da mor­te está relacionada com o que virá depois da morte. O medo do desconhecido, a preocupação com o que poderá estar além das portas da morte, gera angústias e sofrimen­to. Algumas pessoas recorrem à simples negação de tudo, para se tranquilizarem. Nada existe depois da morte, dizem eles. Entretanto, a simples ideia do vazio, do nada, cria uma angústia ainda maior, pois de que vale o que se faz nesta vida, se depois tudo acaba?
A própria satisfação dos atos em si, o hedonismo, a alienação, são formas de anular as preocupações pelo "de­pois", mas, no mais profundo interior de cada pessoa, per­siste a dúvida, o medo: e depois?
Muitas religiões e filosofias procuram explicar o que se segue à vida. Algumas, reduzindo tudo a formas de energia, levando o homem a se preocupar com sua purificação ener­gética, visando a união, a fusão com o centro energético superior que se mistura com a figura de Deus, do Supre­mo Criador, de outras religiões.
Algumas seguem os princípios da reencarnação, onde cada homem, submisso à inexorável lei do Karma – o prin­cípio da causa e efeito – morre e renasce em outro corpo, seguindo uma longa sucessão de vidas, onde iria pouco a pouco se redimindo de erros cometidos nas encarnações anteriores, até chegar a um ponto onde estivesse suficientemente purificado para se unir ao Ser Supremo. Não nos compete aqui discutir as formas apontadas por estas di­ferentes religiões. Procuraremos tão-somente dar uma visão de como o católico pode prever os acontecimentos que se sucederão à morte, modificando um pouco o que os tra­dicionais catecismos – dados em linguagem acessível a crianças – ensinavam em nossa infância e que, para mui­tos adultos de hoje, permanecem como o ensinamento real da Igreja Católica, simplesmente porque não procuram amadurecer seus conhecimentos de religião, tanto quanto amadureceram seus conhecimentos técnicos e científicos.
Inicialmente, uma palavra sobre: "existirá o depois da vida?" Numa sociedade altamente tecnocrática, admitir a existência de uma outra vida sem comprová-la cientifica­mente não é aceito por muitos. A própria existência de Deus é questionada, já que ele não foi ainda demonstrado em laboratório.
Lembramo-nos das palavras tão ingênuas de Gagarin, quando retornou de seu primeiro voo espacial: "Andei pelos céus e não vi Deus!" Pobre afirmação preparada por uma filosofia materialista... Será que a simples visão dos cos­mos, o equilíbrio formidável das gigantescas estruturas planetárias não lhe davam a imagem indiscutível de um Criador Supremo, de um Maestro Fantástico que rege a sinfonia do infinito? Será que ele, cientista afeito ao racio­cínio profundo, não compreendia que a simples localização de Deus na escotilha de uma nave espacial ou nas lentes de um microscópio anularia totalmente a essência inefável de Deus? Deste modo, falar sobre uma vida após a vida, com homens tecnicistas, se torna bastante complexo.
Como comprovar algo que transcende às nossas próprias limitações de conhecimentos, de compreensão e até mesmo de palavras, para exprimir uma realidade além de nossa realidade? Entretanto, o problema existe e atrai a muitos. Atraiu inclusive a um psiquiatra americano, chamado Ray­mond Moody Jr. Suas atenções foram despertadas inicial­mente em 1965, quando ele era estudante de filosofia e teve um contato maior com um professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina de Virgínia. Este professor tinha experienciado uma "morte clínica" – pequeno período em que tivera uma parada cardíaca e, durante este tempo, pas­sou por uma experiência que marcou toda a sua vida. Nar­rando esta experiência a Raymond Moody, despertou neste um enorme interesse pelo assunto, levando-o a buscar novos casos, investigando-os em todos os seus detalhes.
Após entrevistar cerca de 150 pessoas que passaram por experiências semelhantes: ou "morte clínica" ou acidentes gravíssimos, com condições bastante próximas da morte, recolheu todas as informações obtidas e, depois de ordená-las, publicou-as no livro Vida depois da Vida, complemen­tando-o com um segundo volume: Reflexões sobre Vida depois da vida. Neste seu relato, ele conta como estas pessoas, que estiveram frente a frente com a morte, durante alguns minutos, talvez segundos, viveram experiências, que marca­ram profunda e definitivamente suas vidas, levando-as in­clusive a uma mudança radical de comportamento e da própria maneira de encarar a vida.
Resumidamente, damos a seguir suas descrições. Maiores detalhes serão encontrados nos livros originais. Depois de entrevistar as 150 pessoas, Moody verificou que pratica­mente todas tinham vivido uma experiência inusitada e fascinante, onde os detalhes coincidiam em praticamente todas as histórias. Não eram pessoas relacionadas entre si, nem membros de uma mesma comunidade religiosa ou cultural. Eram pessoas diversas, que nunca haviam se co­municado entre si e, portanto, não havia a menor possibili­dade de uma "construção" artificial de estórias. Principal­mente porque, até a publicação de seu primeiro livro, Moody não foi capaz de encontrar na literatura qualquer outra narrativa semelhante, que pudesse ter sido lida anterior­mente por estas pessoas, levando-as a construir uma estória em cima de outras lidas anteriormente.
Cada uma destas pessoas narrou tudo aquilo que vi­venciou tão logo aconteceu sua "morte clinica" ou o aciden­te grave. E os fatos narrados por cada uma delas tinham uma certa sequência, também igual para todas as outras.
Os acontecimentos mais significativos e que gostaría­mos de comentar depois foram os seguintes:
1) Ruído: Imediatamente após o fato, a pessoa ouvia um ruído. Para alguns era uma música, para outras sons de sino, campainha ou então um zumbido, às vezes descrito como desagradável.
2) Fora do corpo: Uma sensação estranha era sentida por quase todos, que se viam, subitamente, fora de seu pró­prio corpo. Era como que se estivessem flutuando acima do local – sala de cirurgia ou local do acidente – ven­do tudo o que se passava, inclusive o seu próprio corpo. Várias pessoas foram capazes de descrever, detalhadamente, fatos acontecidos durante sua "morte clínica", dentro e fora da sala de cirurgia, de tal forma correta, que somente se estivessem presentes naquele local po­deriam fazê-lo. E, naquele momento, medicamente esta­vam imóveis, inconscientes.
3) Túnel: Simultaneamente a estes fatos, tinham a sensação de penetrar num túnel escuro, passando por ele até chegar a um ambiente fartamente iluminado. Ali tinham a experiência seguinte.
4) Encontro com o Ser de Luz: Do outro lado do túnel, encontravam-se com um Ser de Luz, o qual transmitia uma enorme sensação de Amor e de Paz. Este Ser de Luz comunicava-se com a pessoa por meios indescrití­veis, já que não possuía boca nem voz, mas era perfei­tamente compreendido. Este Ser como que convidava a pessoa a rever a sua vida e isto acontecia praticamente de uma só vez, porém com todos os detalhes. Durante esta revisão de vida, eram apontadas as situações em que a pessoa havia, de certo modo, falhado em seus objetivos. Basicamente, eram apontadas as situações onde havia faltado com a caridade e aquelas em que teria tido oportunidade para um crescimento espiritual e não as aproveitou adequadamente. Mas não havia, naquela re­visão, um sentido de censura, de repreensão. Havia, mui­to mais, um sentido de orientação, de crescimento. Havia, sobretudo, um grande Amor irradiando daquele Ser de Luz.
5) Barreira: Em seguida, a pessoa se via diante de uma espécie de barreira, a qual ela sentia que devia atravessar. Entre­tanto, ao procurar fazê-lo, era puxada de volta, acabando por acordar em seu próprio corpo, quando as medidas terapêuticas instituídas tinham conseguido recuperar o paciente. Quase todos diziam que, de certa forma, teriam gostado muito de continuar a jornada, passando além da barreira. Mas não houve um só caso de alguém que passasse a bar­reira e depois retornasse.

Analisando sucintamente estas experiências, podemos concluir:
Teriam estas pessoas realmente experienciado a morte? Seria, tudo isto por que passaram, fruto exclusivamente da imaginação? Cremos que, afirmar de modo categórico o que foi a realidade de tudo isto é praticamente impossível. Podemos, em função dos muitos elementos apresentados detalhadamente nos livros originais, deduzir o seguinte:

1º) Estas pessoas não morreram realmente. Poderíamos dizer que passaram por uma experiência de "pré-morte", que estaria além da vida, porém antes da morte verdadeira. A barreira seria o elemento mais significativo desta afir­mação.
Não houve um só caso de pessoa que, tendo passado a barreira, tivesse voltado e narrado suas experiências.
Todos sentiram vontade de atravessá-la, porém todos voltaram antes. Isto nos parece a diferença entre a morte verdadeira e a pré-morte. Aqueles que atravessaram a bar­reira são os que morreram realmente. Estes não voltaram. E continuaremos sem saber, dentro de nossa escala de va­lores, de referências, como é o "lado-de-lá". Entretanto, o que vivenciaram já foi o suficiente para lhes dar uma pe­quena amostra de que existe realmente o outro lado. Todas estas pessoas entrevistadas diziam da enorme dificuldade em narrar o que vivenciaram. E esta dificuldade residia, especialmente, na falta de expressões verbais adequadas para descrever o que viram e o que sentiram.
Como descrever um local onde as dimensões de espaço e de tempo não existem? Como falar de um lugar que não é grande nem é pequeno, tem cores que não são cores, tem luz mas não é a nossa luz? Onde o tempo não é tempo, onde toda uma vida acontece num só instante, de modo a ser vista em seus mínimos detalhes?
Algumas destas pessoas estiveram em estado de "morte clínica" apenas por pouquíssimos minutos, mas, dentro deste pequeníssimo tempo, foram capazes de viver tudo isto e até as suas próprias vidas inteiras!
Portanto, como "amostra" do que vem depois, estas experiências foram perfeitamente válidas. Ainda que "amos­tra" infinitamente pequena!

2º) A passagem pelo túnel é bastante interessante se a relacionarmos com o nosso próprio nascimento. Imagine­mos uma criança dentro do útero materno. Se fosse possível entrevistar esta criança, pouco antes de seu nasci­mento, ao ser interrogada sobre o que ela achava da ideia de vir para um outro mundo, aqui fora, ela certamente diria: "Ora, o que é isto! Não existe mundo além deste em que vivo! Aqui estou bem acomodada, tenho tudo de que necessito, estou muito bem aqui! Não gostaria de sair, pois, além do mais, se sair daqui acredito que tudo vai se acabar!"
Mais tarde, ao se iniciar o trabalho de parto, a criança será apertada, espremida e, no auge de seu desconforto e sofrimento, vislumbrará um túnel escuro como única saí­da para aquela situação. Penetrará por este túnel (canal vaginal) e acabará por sair para a luz, chegando a um outro mundo, muito mais amplo do que aquele em que viveu por meses e onde terá muito mais oportunidades para crescimento, para evolução. Onde, apesar de todos os des­caminhos de seu zelador, o homem, poderá ser feliz, poderá amar e ser amado. Da mesma forma, quando completarmos nossos "nove meses" na Terra, também sentiremos os so­frimentos e o medo de sair para um outro mundo que desconhecemos – e que até negamos existir – mas virá o "trabalho de parto" da morte, faremos nossa entrada pelo túnel e iremos descobrir, do outro lado, uma nova vida, muito melhor, muito mais real. É como se estivéssemos no grande útero do Universo, num processo de gestação, aguardando o momento de nos­so nascimento para a vida verdadeira e definitiva. Pois morte e nascimento são apenas nomes diferentes para uma mesma realidade: o início da vida!

3º) Ser de Luz: Muitos dos que vivenciaram esta expe­riência identificaram este ser com Cristo. Esta identificação pode ser real tanto como pode ser atribuída a uma formação religiosa prévia. O importante, entretanto, é com­preendermos o sentido deste Ser e de sua atuação. Ele representava Amor, Paz. Mas também era o Mestre que mostrava, carinhosamente, o que cada um havia feito de suas vidas.
Procurava ajudar no sentido de uma correção, de uma mudança. Pois todos tiveram uma nova oportunidade. E, no dizer de Moody, praticamente todos passaram por uma mudança radical em suas vidas.

4º) Experiência fora do corpo: Esta descrição traz para muitas pessoas uma enorme preocupação, pois aparente­mente estaria em contradição com os ensinamentos básicos da doutrina católica. Na realidade, não há qualquer motivo para esta preocupação. Com o desenvolvimento da parapsi­cologia, muitos fenômenos que ocorriam com diferentes pessoas, e que eram levados ao campo do sobrenatural, hoje são perfeitamente explicados por esta ciência.
O cérebro humano, esta parte maravilhosa da criação de Deus, é extremamente pouco conhecido pela ciência hu­mana. Sabe-se que utilizamos apenas 30% de sua capacidade, restando 70% para ser compreendida e melhor utilizada. Telepatia, telecinesia, clarividência, são fenômenos hoje bem aceitos pela ciência, ainda que não completamente expli­cados e passíveis de serem reproduzidos quando se quer. Tanto que pessoas que apresentam tais fenômenos e se propõem a se tornar artistas de palco para tais demons­trações, aprendem também inúmeras maneiras de fraudar, pois, se num espetáculo público não conseguem os efeitos de sua paranormalidade em determinada situação, repro­duzem-na por meios fraudulentos, por prestidigitação ou por qualquer outro meio natural. Exemplos bem típicos disto tivemos com Uri Geller e outros paranormais, que se tornaram artistas de palco para retorcer talheres, parar relógios e adivinhar coisas.
Voltando à experiência fora do corpo, não existem ainda resultados de pesquisas que expliquem de forma total e definitiva tais fenômenos. O que se sabe é que eles existem e são comprovados em laboratórios. Um exemplo disto é feito colocando-se cartões com desenhos previamente esta­belecidos e em ordem determinada numa sala de experiên­cias onde existe um teto falso. Estes cartões são colocados acima do forro, neste teto falso. A pessoa que apresenta eventualmente este fenômeno fica na sala, rigorosamente observada e controlada pelos pesquisadores. Ela se coloca em condições de relaxamento, que favorecem o aparecimen­to da "saída do corpo" e, algumas vezes, em número esta­tisticamente significativo, é capaz de descrever, sem erros, os cartões e a posição em que se encontram, no teto falso, onde ela não podia ver pelos meios usuais.
Estas pessoas informavam que, nas vezes em que foram capazes de descrever corretamente, haviam saído do corpo, atravessado o teto falso e visualizado os cartões. Esta saída do corpo não significa um "abandono" do corpo, mas uma espécie de expansão da consciência, que vai além dos limi­tes corporais, da mesma forma que sabemos de fatos acon­tecidos com pessoas que foram vistas bem distantes de onde estavam, geralmente acidentadas.
Muito ainda temos a descobrir a respeito das maravi­lhas do cérebro humano. Pena que dedicamos tantos es­forços, tantas verbas, para descobrir novos meios de destruição, de assassinato e nos descuidamos de partes tão importantes para a felicidade humana. Até aqui, é bom re­cordarmos a "revisão de vida" feita pelo Ser de Luz. Será que estaremos em condições de enfrentar esta revisão de vida, agora?
Feitas estas considerações genéricas, vamos ao nosso ponto fundamental: Qual a visão católica da vida depois da vida?
Muito já se falou, muito já se escreveu a respeito deste assunto. A escatologia (grego: aquilo que vem por último) é uma parte essencial da fé e da teologia. Em linguagem mais antiga, a escatologia era chamada de "os novíssimos do homem e do mundo", numa alusão ao que vinha depois do fim: o mais novo para a realidade do homem e do mundo. Compreender a morte é fundamental para o ho­mem, especialmente o que se diz cristão, pois chega a ser um paradoxo aquele que crê em Deus, que deseja uma vida junto ao Criador, temer a passagem que o leva dire­tamente a esta situação desejada.
Mas o paradoxo não fica somente aqui. Dentro deste contexto, o suicídio poderia ser tomado então como algo de saudável, pois seria a busca mais rápida deste encontro com o Pai. O que não é verdade. Daí, dizermos da importância de uma melhor compreensão da morte, sobretudo para um viver mais pleno, mais feliz, mais cristão.
Mas e o depois da morte? O que acontecerá com o homem? Recorrendo â Bíblia, vamos tomar três citações de Paulo: "Mas como está escrito: o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não per­cebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam" (1Cor 2,9). "Pois fomos salvos em esperança; e ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos" (Rm 8,24-25). "A fé é um modo de já pos­suir o que se espera, um meio de conhecer realidades que não se veem" (Hb 11,1).
Analisando estas citações, podemos afirmar que o conhecimento exato de como será "o outro lado" não deve ter qualquer importância para aquele que tem fé. A busca destes conhecimentos é um imperativo para aquele que não acredita, pois ele precisa pegar para crer.
Entretanto, como tocar aquilo que está muito além de nossa compreensão?
Talvez, se nos fosse dado ver, tocar, o outro lado, menos ainda iríamos acreditar, pois quando o sentíssemos completamente fora de nossos valores, de nossos referen­ciais, certamente iríamos negá-lo. Assim como negamos tantas realidades que frequentemente ocorrem em nossas vidas, simplesmente porque não estão enquadradas dentro de nossos valores e referenciais daquele momento. E, pas­sado algum tempo, ao mudarmos estes valores, ficamos questionando como fomos capazes de negar coisas tão reais.
De qualquer forma, podemos conjecturar em torno do que irá acontecer após a nossa morte, buscando com isto dar algum terreno para pisarmos, em busca do fortalecimento de uma fé que deve crescer sempre e sempre. Aprendemos no catecismo que, quando o homem morre, sua alma deixa o corpo e vai para o julgamento de Deus.
Imaginávamos então um tribunal onde um juiz severo, sentado solenemente em sua mesa, ia apontando nossos pecados, colocando-os publicamente em nossa frente, para em seguida pronunciar a sentença terrível: Inferno?... Purgatório?... Céu?... Então, conforme a decisão final, iríamos para cavernas escuras, onde enormes caldeirões com óleo fervendo seriam utilizados para nos cozinhar por toda a eternidade... Além das terrificantes figuras demonía­cas com seus chifres e tridentes laceradores.
Numa melhor hipótese, iríamos para salões enormes, de chão incandescente, felizmente sem as figuras demoní­acas, onde passaríamos uma temporada, meses ou anos, dependendo de nossas culpas, até que pudéssemos ser leva­dos ao céu. E, se conseguíssemos a clemência do Juiz, pas­saríamos ao céu, onde ganharíamos um par de asas, uma harpa e ficaríamos flutuando eternamente sobre as nuvens brancas.
Como imagem a ser transmitida para crianças ingênuas, isto ficava bem. Mas, da mesma forma que a matemática era ensinada – mostrando-se João com uma maçã, encontrando-se com Maria, que tinha outra maçã, e depois perguntando-se quantas maçãs ficavam na cesta, quando eles ali as colocavam (para se ensinar 1 + 1 = 2) e nos anos seguintes as opera­ções matemáticas iam mudando até se chegar à álgebra, trigonometria – o ensino de religião deveria ter evoluído igualmente. A fé infantil, ingênua, deveria ir sendo substi­tuída por uma fé adulta, com conhecimentos teológicos proporcionais à própria evolução intelectual do homem.
Mas isto não acontecia. Todos, ou quase todos, ficavam estacionados no catecismo infantil e então, ao chegar à idade adulta, aqueles ensinamentos se tornavam impossíveis de serem aceitos e ao invés de se procurar melhores co­nhecimentos, simplesmente abandonava-se tudo, passando-se a considerar a religião como coisa de tolos. Como entender, então, todo aquele processo de "julgamento", céu e inferno? Para compreendermos isto, é preciso que descubramos o ho­mem em sua totalidade.
Temos um corpo material, feito de células, átomos e moléculas ordenadas de maneira fantástica, de tal forma que, até hoje, toda a parafernália científica ainda não con­seguiu reproduzir com perfeição nem uma pequena parte do ser humano. Mas este corpo é apenas uma parte do todo, que é o homem. Além do corpo material, temos a mente e o espírito, que dão ao homem a sua essência trini­tária, criada à imagem e semelhança de Deus, também trinitário: Pai, Filho e Espírito Santo. Assim como a Trindade Santa é uma só pessoa, também o homem, em suas três partes, é uma só, indivisível. Não se compreende a existência do espírito sem o corpo e sem a mente, assim como o corpo não existe sem o espírito e sem a mente.
Entendendo esta composição, vamos também entender o porquê de tantos problemas, de tanta violência, de tantos desencontros nos dias atuais. O homem cuida de seu corpo pela alimentação, pelos exercícios. Ele cuida de sua mente pelo trabalho intelectual, pela leitura. Mas o espirito não tem sido cuidado adequadamente. E ao se descuidar do espírito, o homem se torna fraco em uma de suas partes essenciais, passando a se comportar como um automóvel que, apesar de uma carroceria muito bem cuidada, de um motor fantástico, estivesse sem pneus e com a suspensão toda desengonçada. Certamente ele não andaria, não exerce­ria sua função completa. Poderia ser admirado na beleza de suas linhas, na potência de seu motor, mas tudo isto estaria inútil pela impossibilidade de se movimentar.
Assim é o homem. Realiza maravilhas com seu corpo, coisas fantásticas com a sua mente, mas o resultado final de suas obras redunda em fracasso, pois não trabalha harmonicamente com toda a sua realidade. Seu espírito está atrofiado e se atrofiando, a cada dia mais. Quando o homem morre, o que primeiro acontece é a sua saída das limitadas dimensões de tempo e espaço em que vivemos. Isto pudemos constatar nas experiências descritas por Raymond Moody, onde observamos que tudo o que acontecia era em abso­luta ausência de tempo e espaço.
Saindo destas dimensões, ele entra, então, na eternidade, que é exatamente a ausência do tempo. Já não existe nem ontem nem amanhã. Não existe passado nem futuro. Só existe o presente que é a eternidade. Deste modo, o homem entrará na participação total de toda a história da própria humani­dade. Ele estará vivenciando a criação do universo e o juízo final.
E será nesta condição que ele se encontrará  consigo mesmo. Ao morrer, deixa de existir o que chamaríamos de homem exterior, que foi esta imagem com que vivemos durante todo o nosso tempo de existência terrestre. Imagem que constantemente colocava máscaras, que assumia apa­rências, sempre em função do momento, dos interesses. Imagem que era capaz de mentir, de negar, de ocultar, de aparentar alegria quando estava triste, de chorar apesar da alegria. Este homem exterior morre com o nosso corpo. Corpo que morre apenas em sua aparência também exterior. São nossas células, nossos átomos e moléculas, que realmente não eram nossos, pois estávamos constantemen­te substituindo-os, trocando-os, renovando-os até voltarem à natureza a que pertencem. Restará o corpo real, nosso verdadeiro corpo, que não terá estruturas atômicas nem energéticas, pois sua substância será totalmente desprovida de tempo e espaço, tendo apenas as características que não somos capazes de descrever ou definir, pois estão além de nossas capacidades intelectuais. Características compatíveis com a essência de Deus, com o infinito e a eternidade, que serão a nossa nova realidade. E este corpo real não se separará do espírito e da mente, que dele fazem parte integral e indivisível.
Despertará assim o homem interior, pleno, autêntico, sem máscaras e sem engodos. E será este nosso homem in­terior que irá fazer o seu próprio julgamento. Não haverá um Juiz Severo, mas um Pai  Amorosíssimo, que "escutará” seu filho, o qual libertado de suas mentiras, de suas limitações, tomará uma decisão, decisão esta em função de tudo aquilo que foi a sua vida terrestre.
O homem interior saberá, plenamente, o que foi e o que fez em sua vida, quais as opções que tomou e como as tomou. Como agiu, como pensou, como refez, a cada momento, sua existência. E em função de seu próprio modo de viver, decidirá, agora de maneira definitiva, a sua con­dição para a eternidade.
Se se julgar em condições de optar por estar com Deus, seu Criador e Pai, esta opção corresponderá àquilo que aprendemos a chamar de céu. Pois estar com o mais puro Amor é estar na mais completa Felicidade. Se, entretanto, em seu próprio julgamento, decidir por estar sem Deus, já que sua vida foi toda ela dirigida para esta con­dição, ele fará a opção por estar sem Deus e isto corres­ponderá ao que aprendemos a chamar de inferno.
Qualquer destas duas decisões têm a característica básica de definitivo, pois estando fora do tempo, não existindo um amanhã para uma mudança de ideiae tendo  a decisão sido tomada pelo homem interior, que não men­te, não engana os outros nem a si próprio – não haverá uma nova oportunidade para mudar tudo. A oportunidade existe sim, existe durante todos os dias que temos, de nossa vida terrestre. Não existirá depois da morte, depois da decisão que será única e final. Compreendendo isto, entenderemos en­tenderemos aquilo que nos foi ensinado no catecismo, quan­do diziam que o céu e o inferno eram para sempre. Depois de adultos, porém, buscamos sair desta realidade, alegando que Deus era muito bom e um dia ele “tiraria” todo mundo do inferno.
Deus não tira. Pois assim como ele respeitou nosso livre-arbítrio durante toda a nossa existência na terra, livre-arbítrio que nos permite até mesmo negar a existência de Deus – e ele nunca nos impõe sua vontade: tem de acre­ditar! – também depois de nossa morte, ele respeitará a nossa decisão e jamais irá impor sua presença pela eterni­dade àquele que sempre o negou e renegou, durante a vida temporal. Céu e inferno – apenas nomes que damos a situações e não a locais – são definitivos; eternos, por de­cisão nossa e não por imposição de Deus. A vontade é nossa. A decisão é nossa. E o purgatório? Compreendere­mos o purgatório, não como lugar, mas também como si­tuação, se entendermos que, sendo Deus a suprema perfei­ção, o homem impuro não tem condições de estar diante dele, muito menos pela eternidade. Então, se a decisão do homem interior foi para estar com Deus, ele deverá passar por algo que chamaríamos de "processo de purificação", que lhe dará a condição de estar diante da perfeição que é Deus. Este processo de purificação é aquilo que aprende­mos a chamar de purgatório. Como isto será, está além de nossa compreensão.
Diante disto, podemos compreender a invalidade da reencarnação. O homem tem uma só existência e esta lhe é suficiente para construir a decisão final de seu homem interior. Se lhe fossem dadas várias existências, não seria apenas sua última a que motivaria a decisão final, porém a soma de todos os seus comportamentos. Portanto, tanto faz que o homem viva um, dez, cinquenta ou cem anos, será o conjunto de sua vida que trará a decisão final. Entre­tanto, é preciso lembrar-se de que esta decisão não é a decisão do homem exterior, que somos nós em nosso dia ­a dia. Uma pessoa que tenha levado uma existência totalmente afastada dos caminhos de Deus, mas que num deter­minado momento reconhece suas faltas e faz todo um pro­cesso de revisão e mudança de vida, gera um mérito muito maior do que alguém que segue seus caminhos sem maiores convulsões interiores. Lembremo-nos da palavra de Cristo, quando diz que haverá maior alegria no céu por um pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (Lc 15,7). Portanto, é o conjunto da vida de cada pessoa que resultará na decisão final, mas cada ato tem seu peso diferente e pode uma simples atitude modificar todo um contexto de vida.
E se entendermos que na morte o homem deixa a di­mensão tempo, não haverá mais o retornar para começar outra vida, dentro da temporalidade. Diz Paulo: "E é um fato que os homens devem morrer uma só vez, e logo em seguida vem o julgamento" (Hb 9,27). Com isto fica mais do que evidente que não é possível a reencarnação e que cabe ao homem fazer da única existência que lhe é dada, a caminhada segura para a decisão final: para Deus! Entre­tanto, não bastaria esta decisão final nossa, para alcançar­mos a plenitude de Deus. Nossas limitações de homem-cria­tura nos pesam em demasia para que sejamos capazes, por si sós, de determinarmos a bem-aventurança eterna. Diante disto, Deus, em sua infinita sabedoria e misericórdia, deu-nos o elemento que nos faltava para tal decisão: a reden­ção através de seu próprio filho, Jesus Cristo.
Foi a disposição voluntária do Filho de Deus, de se en­tregar à cruz, às humilhações e às torturas que lhe foram impostas pelo próprio povo escolhido de Deus, com o claro e específico objetivo de redimir o homem, que nos deu a condição básica que nos faltava para completar a decisão final, a de-cisão que nos cortará das limitações e sofrimen­tos da condição de pecadores e seres imperfeitos, para a eterna felicidade. Sucessivamente, Cristo nos deu provas des­ta redenção: "Pois aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará" (Lc 9,24). "Pois Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele" (Jo 3,16-17). "Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra viverá" (Jo 11,25) "... e, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim" (Jo 12,32) "...porque não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo" (Jo 12,47). "Eu sou o Caminho, a Verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim" (Jo 14,6).
Cristo, pela sua morte na cruz, trouxe uma nova di­mensão para a morte. Se observarmos o Antigo Testamento, vamos ver que ali a morte está sempre ligada ao pecado, ao castigo pelas transgressões do homem. A morte em si era o castigo para o mal. Com a vinda de Cristo e com sua morte seguida pela ressurreição – ressurreição esta que confirma a condição messiânica de Filho de Deus, de Jesus Cristo – também nós passamos da morte pelo peca­do, sem ressurreição, para a morte-passagem, a morte-liber­tação, que nos leva ao encontro do Pai. A morte em si deixa de ser castigo, para ser passagem. Uma nova perspec­tiva é criada com a vinda de Cristo e nele o homem encon­tra também o exemplo, o caminho e a ajuda de que neces­sita para superar os obstáculos desta caminhada até o fim de seus dias.
O que dizer então do suicida, quando este busca encur­tar a sua vida em busca de uma Paz eterna? A interrupção voluntária da própria vida é uma violência contra os pla­nos de Deus. É, de certa forma, uma pretensão do homem ser maior do que o próprio Criador, ou seja, ele, o homem, passa a ser o senhor do tempo e da vida, decidindo, por si só, quando deverá terminar a sua jornada. Por esta ati­tude de soberba, o homem contesta a Deus e assim cria para si a condição de negar o "estar com Deus", no mo­mento de sua decisão final.
Cabe, portanto, a cada homem viver a vida que lhe é dada, não importa o tempo que terá. A cada dia ele deve estar construindo a sua decisão interior, de tal forma que, quando chamado a tomá-la, o faça realmente para Deus.
Uma palavra final a respeito do inferno. Para muitos, a simples menção do inferno contradiz a bondade infinita de Deus. Já explicamos que o inferno não é uma criação de Deus, mas uma decisão do homem que se permite negar a receber o infinito amor que Deus lhe quer dar. Deus respeita esta negação de receber. Não se pode dar algo a quem não o quer receber. E, então, o inferno é criado.
Mas, sendo Deus o criador de todas as coisas, o Senhor absoluto de tudo, pode-se admitir, dentro de um processo de Esperança, que no final da temporalidade terrestre, na Parusia, que o Amor Absoluto venha realmente a impregnar todas as coisas e, quem sabe, até mesmo aqueles que se recusaram a ser amados possam ser restaurados, da eter­nidade de volta para o tempo e, em seguida, readmitidos na eternidade do Infinito Amor de Deus!


BIBLIOGRAFIA

D'ASSUMPÇÃO, E.A. Por Que Deixei de Ser Cristão? Loyola, São Paulo 1981.

BOFF, L. A Ressurreição de Cristo: a nossa ressurreição na morte. Vozes, Petrópolis, 1974.

______. Vida para além da morte. Vozes, Petrópolis, 1976.

BOROS, L. Nós somos futuro. Loyola, São Paulo, 1971.

LËON-DUFOUR, X. Vocabulário de teologia bíblica. Vozes, Petrópolis, 1972.

MOODY Jr., R.A. Vida depois da vida. Nórdica, Rio de Janeiro, 1979, 2ª ed.

______. Reflexões sobre vida depois da vida. Nórdica, Rio de Janeiro, 1983.

Eu faço novas todas as coisas. Iniciação à Teologia, vol. 15. Paulinas, São Paulo, 1980.

A Bíblia de Jerusalém. Paulinas, São Paulo, 1975.

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